Este blog pertence a quem mais não vai querer que partilhar alguma da experiencia adquirida ao longo dos seus anos os quais não são assim tão poucos. Assim fica revelada aqui a sua intenção.

9.7.08

Ao PAIZ

110 estudantes da
Universidade de Coimbra
4 de Dezembro de 1906
(entre os quais Diniz Severo Correia de Carvalho - 2º anno de medicina)





























































AO PAIZ
Dos estudantes revolucionários
De Coimbra


No manifesto publicado por esta forte geração de estudantes republicanos de 90 na alma heróica dos quaes nós queremos beber toda a crença e toda a audácia que formam homens e sagram luctadores, faz-se o processo documentado da dynastia de beatos, traidores e cobardes que é a dynastia brigantina, até esses inolvidaveis dias que seguiram o ultimatum de 11 de Janeiro e o convénio de 20 d’agosto. A Pátria, arrastada por todas as chancellarias da Europa aos pontapés do rei e dos governos, parecia eguer-se num impeto de raiva,galvanisada pela própria humilhação, vitalisada pela própria dor, contra as quadrilhas que a prostituíam à Inglaterra.
«É preciso – diziam os estudantes republicanos de 90 – que taes factos se não tornem a repetir, que à historia portuguesa não venham juntar-se novas paginas de vergonha e degradação, que o sr. D. Carlos seja o ultimo representante dessa dynastia de ineptos.»
É preciso – dizemos nós tambem - que o Sr. D. Carlos seja o ultimo representante duma dynastia de ineptos.
Esse manifesto appareceu a 15 de Novembro de 1890 e era, a par do candente libello d accusação dos Braganças, um apello ao partido republicano para que salvasse a pátria pela Revolução.
Como os estudantes republicanos de 90,nós apellamos para o partido republicano nesta hora de anciedade e de esperança, em que todo o paiz vibra num unisono cântico de guerra a caminho da Republica.
O manifesto de 90 foi verdadeiramente um toque de clarim.
Em 31 de Janeiro de 1891 rebentou a revolta no Porto A recordação dessa trágica madrugada faz-nos ainda derramar lágrimas de desespero. Porque falhou a revolta de 31 de Janeiro ?Nem nos cumpre averigua-lo, nem se sabe ainda bem porquê. A revolta falhou, e, enrolada no ultimo corpo cahido sobre as lages da praça de D Pedro, cahiu a ultima esperança de vitoria .O espírito da Redempção, que essa manhã de nevoeiro pairara sobre a alma portuguesa, batera as azas e desapparecera entre o fumo do ultimo cartucho, deixando-nos somente a imagem gloriosa nos olhos devorados de todas as anciãs dos vencidos.
A monarchia deu-se então mais uma vez a prometter os mais sábios processos políticos e a mais escrupulosa e honesta administração. A principio a Monarchia transigiu. «De sorte que o systema actual de governar é transigir: mas transigir sem preoccupação de formulas ,nem o menor respeito ás conveniências. As instituições não curam já d’assegurar o pretigio factício de que as cercavam as leis: agora fazem tudo ,como as prostitutas famintas, comtanto que as tolerem!»- commentava Fialho d’ Almeida .
Mas o systema de defeza pela oppressão e pela espionagem delineava-se já,porque sempre ao alcance dos medíocres a oppressão e a espionagem se afiguraram os pontos focaes da orbita governativa. Logo se publicou um decreto referente a forma de julgamento dos incursos na revolta, estabelecendo a retroactividade da lei. E pouco depois, em 26 de Fevereiro de 1891,publicou-se outro decreto estatuindo que os commandantes dos regimentos enviassem secretamente ao ministério da guerra, no fim do anno, informações sobre os officiaes que servissem debaixo das suas ordens.
Surge mais um ministério-salvador, o ministério Dias Ferreira .Oliveira Martins (mommsen ou Arlequim?) formula mais ou menos descaradamente a theoria do engrandecimento do poder real .
Publicam-se as leis de salvação publica. Vem a bancarrota. O Paiz soffre tudo. O Ministério Dias Ferreira está no poder poucos mêses. Uns após outros, esses ministérios salvadores, pretensas soluções de situações insolúveis, estatelam-se miseravelmente nas alcatifas dos paços reaes .
O partido republicano, sem direcção, sem plano, quasi sem homens (João Chagas, tenente Coelho no degredo ;José Sampaio, Basílio Telles, Alves da Veiga, no exílio; uns , recolhidos ao remanso dum gabinete d estudo; outros, facilmente desilludidos e cançados, tratando das terras e dos achaques) era, no entanto, ainda o espectro negro que perturbava a digestão do rei e respectivos serventuários e caudatarios. É que a republica não era já uma desforra , uma desaffronta das torpezas da monarchia e das cubiças da Inglaterra – era bem um ideal que se ia apoderando numa rapidez de vertigem,pela própria virtude immanente, da nação inteira.
Apparece na rampa o ministério Hintze –Franco-Valbom; e, alijados Bernardino Machado e Fuschini,que davam ao ministério certas garantias duma acção honesta e liberal,entra-se definitiva, cynica e impudicamente no engrandecimento da corôa, na coacção e na corrupçãso systematicas,no cerceamento de todas as regalias cívicas, no estrangulamento de todo os direitos de associaçõ, iniciativa e representação,na expulsão dos republicanos de todos os logares públicos, nas repressões e nas perseguições de toda a ordem, na emissão de leis e decretos in odiun, no triumpho da regedoria e do caciquismo, arvorados em processos de combate! Para que citar leis e factos? Leis e factos pesam ainda sobre nós como montanhas de chumbo . Nessa obra assassina tem o principal papel João Franco, que uma successão de intrigas travestiu de MESSIAS e que a lógica inelutável dos acontecimentos transformou numa catapulta inconsciente batendo os últimos reductos da monarchia .



A certa altura, porem, pouco depois da morte de Serpa Pimentel e enthronizada definitivamente à frente do partido e duma situação regeneradora a fatídica figura de estúpido-mau de Hintze, saco roto de banalidades rhetoricas e de capachismos monarchicos, que a posteridade um dia, cheia de pasmo e nojo, a custo admittirá como tendo sido qualquer coisa, numa terra onde não há sommente penitenciários ou idiotas - deu-se a primeira scisão adentro d’uma quadrilha monarchica.
A frente dessa scisão estava João Franco, o dictador, João Franco, o megalómano, exemplar pathologico curioso, servindo a demonstrar quanto podem na mentalidade apoucada e torcida d’um epiléptico, ignorante e mal educado, as narrativas históricas acerca de Nero, Tibério e outros monstros, os milhões que se herdam dos tios ricos e a passividade dos povos que supportam o coice dos asnos.
Invejoso, vesanico e rico, no cérebro do bachareloide inculto, a mania de sempre surgira com mais força – dominar, governar, mandar nos outros ! E ao comparar-se com Hintze que lhe roubasra o pennacho, reconhecia-se-lhe superior pela razão de que tinha mais, incomparavelmente mais dinheiro do que elle ! Sentia-se no direito de ser elle quem mandasse, queria mandar portanto! E assim se deu a scisão, não determinada por intuito nobre e levantado de regeneração nacional, por uma discordância fundamental de princípios, por uma incompatibilidade de consciências honestas com caracteres safados por todas as infâmias, enlameados por todas as estrumeiras, mas condicionada apenas , pela ambição desmedida dum nullo mal intencionado, garantido pelo dinheiro próprio e pela falta de vergonha dos outros.
No primeiro momento o pasmo foi enorme e instinctivamente, na defeza ciosa d’interesses ameaçados pela audácia do novo concorrente, regeneradores e progressistas deram-se ostensivamente as mãos, cerraram fileiras contra o inimigo comum.
Há espectáculos destes nas quintas às horas em que se deita o comer na gamella aos cães de guarda que rosnam e mostram o dente quando o conviva inesperado se approxima .
O rotativismo continuou. O que foi esse período, o estendal de vergonhas, de crimes, de misérias que a sua historia encerra, todo o paiz o sabe, Toda a gente aceada se engulha ao recorda-lo.
O reinado da pança, o império do devorismo mais sórdido, - montureira fétida fermentando com um impudor cynico, verminada das gulas mais vorazes, dos appetites mais inconfessáveis, no desmanchar da grande feira monarchica! A questão dos tabacos serviu a revolver o esterquilinio e o que veio à suppuração foi de tal ordem que de pasmar é como um grande typho moral não invadiu o paiz de sul a norte! E sempre acima de tudo, dominando tudo, como razão efficiente de tudo appareceu-nos a monarchia, o rei , o chefe da Falperra .Chamava-se ora Reilhac, ora Burnay, mas atravez da mascara transparente só não o conheceria um cego …
A critica da questão de há muito que está feita. Ella originou a dissidência progressista – um punhado de homens cuja atitude ainda falta definir precisamente porque, a menos que haja, como na phrase dum grande espírito, «uma obtusidade córnea ou uma má fé cynica», não tardará que esses homens se convençam da nenhuma efficacia das soluções intermédias que não servem para mais que retardar a cura e deixar que se alastre a infecção.
A questão dos tabacos, teve, como todas as grandes questões que apaixonam a opinião publica dum paiz, pelo aspecto moral que a revestiu, a vantagem de lançar jorros de luz sobre a bandalheira do regímen, deixando os seus homens por tal forma cobertos de ignominia e de lama, que perpetuamente ficará na historia das grandes figuras grotescas, esse encanecido velhaco d entremez a quem coubera em herança a chefia do histórico partido de Passos Manuel que, assobiado, pateado, insultado como um palhaço, cahiu ridiulamente do governo , para novamente ceder, logar ao fúnebre e odioso Hintze .

No espírito publico, no entanto, o descontentamento lavrava e a excitação accentuava-se pelas immoralidades constantes da administração e pelos attentados ininterruptos do poder que no dia 4 de Maio attingiu o mais alto grau de fúria repressiva, acutilando os cidadãos que no uso do seu direito saudavam algumas personalidades ilustres do partido republicano que tinham merecido a alta dignidade dos votos populares.
O rei, o governo, todas as auctoridades habituadas à passividade resignada do povo, que elles consideravam irremediável cobardia sem limites, esperavam que a repressão violenta estabelecesse pelo paiz a pacificação absoluta.
Enganaram-se, como se viu; o terror em logar de entrar no espírito da opinião entrou no Paço dos Reis, em cuja atmosphera corrompida se urdiam os saques do thesouro, se tramavam as violências exercidas, se ordenavam os assassinatos praticados !
Foi essa admirável manifestação do Campo Pequeno , em que vibrou a alma duma cidade inteira não só roubada nos seus direitos de representação, mas até impedida de testemunhar aos seus eleitos defraudados, o enthusiasmo e a confiança que elles lhe mereciam , que significou directamente à realeza o seu desprezo e a sua revolta, fazendo fugir dos espectáculos públicos , humilhado e detestado, o seu mais alto representante. Foi então que surgiu, a perturbar a vida regalada e as longas digestões deliciosas em que o rei se podia gabar de arrotar o paiz, a noção clara do perigo .
Como a nação se levantava com a decisão de quem queria ter direitos, como a irritação se alastrava,como os espíritos se incendiavam no fogo de uma revolta legitima , Era preciso um expediente immediato de acalmação que desarmasse as cóleras temerosas de um povo que ameaçava.
Foi assim que esse faccinoroso idiota que se chama Hintze Ribeiro, foi despedido e substituído pelo neo-democrata João Franco que por esse paiz fora andava a chorar copiosamente as lágrimas emocionantes d uma contricção tardia ! Como nas horas Sombrias do agonisar do império de Napoleão III, em que o histórico bandido, depois de dezassete annos de massacres, de torpezas, de dissipações, de violências, apercebido do perigo que corria, quis realizar a alliança da coroa com a democracia, assim também a monarchia portuguesa, num supremo expediente de salvação, arranjou o seu Emile Olivier que proclama o propósito de recuperar, dentro do regímen, as liberdades roubadas , os dinheiros confessadamente roubados.
Dezassete annos depois e que analogia de situações !
O Sr. D .Carlos, como Napoleão III, não quer deputados republicanos no parlamento, e Lisboa, como Paris, elege deputados republicanos .
O Sr. D. Carlos, como Napoleão III, duvidando da fidelidade incondicional do seu exercito temendo que elle seja tomado pela vertigem revolucionaria que faz crepitar a alma do povo cançado de soffrer, augmenta os soldos aos officiaes, imaginando vilmente prende los aos interesses inqualificáveis do seu throno condennado !
Como o sinistro canalha, que o golpe de estado de 2 de Dezembro acorrentou à ignominia duma traição eterna, fazia em plena assembleia legislativa a confissão hypocrita de que queria salvar a liberdade, elle que não tinha hesitado em manchar-se com as tintas rubras do sangue do seu povo que heroicamente reclamava, também o Sr. D. Carlos, criminoso responsável de delapidações confessadas e de tyrannias assignaladas na politica do torpe reinado que faz nódoa e vergonha na historia de uma dynastia-monturo, o Sr. D. Carlos proclama com estranho cynismo a necessidade absoluta duma administração séria e honesta !
Dezassete annos depois, como a França gloriosa dos dias heróicos desertava sob o sudário aviltante do segundo império para se lançar na trajectória luminosa dos seus destinos magníficos, também a pátria portuguesa surge da melancholia duma atmosphera de desgraça, que parecia pesar sobre nós com o cunho trágico duma inexorável fatalidade, para uma vida de resgate e de reparação inadiável.
E agora mais do que nunca ella se impõe. O ludibrio da monarchia democrática, immenso absurdo de que os habitantes se servem para captar os espíritos incautos, ou que os imbecis usam na inconsciência das phrases estrepitosas, cahe aos pedaços , esfarrapado e desmentido , diante da impossibilidade das promessas irrealisaveis e das violencias praticadas.
Os últimos acontecimentos da câmara dos deputados, em que dois representantes republicanos foram expulsos à coronhada de dentro da sala das sessões e despojados dos seus direitos por 30 dias, constituem uma vergonhosa arbitrariedade inédita dentro da própria chronica constitucional tão pejada de despotismos.
Foi Brutal, mas elucidativo! Fez cahir a mascara que disfarçava a face lívida de quem não soube nem pode ser outra coisa do que um ambicioso ruim dynamisado pela epilepsia dum tyranno, e se desfez a aureola de honestidade com que lhe circundava a fromte a illusão renitente dos ingénuos .
Se havia dentro do parlamento português representantes que mereciam ser invioláveis eram elles, os deputados republicanos.
Sahidos do poder e da sinceridade absoluta do suffragio popular, contra a vontade do rei, eram os únicos que verdadeiramente e legitimamente representavam o paiz .
Affrontando o clamor de uma maioria de subservientes, os rigores dum regimento draconiano, com candentes palavras de condennação para o rei e para a monarchia, não faziam mais do que representar a alma nacional na pureza dos seus sentimentos de justiça,e o pais inteiro na defeza dos seus haveres subtrahidos e dos seus interesses prejudicados .
A violência exercida sobre elles é pois , uma violência exercida sobre a própria nação, uma affronta à sua soberania,que demonstra nitidamente que os interesses nacionaes são incompatíveis com os interesses da monarchia que os direitos dos cidadãos são incompatíveis com os privilégios da monarchia que a honestidade de processos administrativos é incompatível com a moral da monarchia !
E diante da confissão dos adeantamentos illegaes feitos ao rei , da conducta brutal usada contra os deputados republicanos, da vida crapulosa dum regimento velho demais para iniciativas novas de regeneração e absurdo demais para emprezas fecundas de democracia ,só queremos e esperamos, como castigo de criminosos authenticos e como necessidade de desenvolvimento, de progresso, de grandeza moral do nosso povo, que o Sr. D. Carlos seja o ultimo ladrão da dynastia de Bragança !
A história está feita. Contra o absolutismo legalisado, diz um celebre historiador, só há o recurso da acção illegal dos indivíduos. Os povos que se resignam estão irremediavelmente condennados. A chaga que não se cauterisa, em poucos momentos corroe inteiramente um corpo e urge amputar o membro que apodrece. Em oitenta annos de constitucionalismo em quase três séculos de dynastia, a convicção da verdade ,já deve estar em todas as almas. A consciencia humana já não aceita, já não concebe o absurdo de famílias parasitas que receberam os povos em herança. É attentatorio da dignidade do homem! «Os reis são na ordem moral o que os monstros são na ordem physica!»disse-o do alto da tribuna deste templo da Justiça imorredoira que foi a Convenção Francesa, a voz vibrante e heróica do abbade Gregoire.
«A historia dos reis é a historia do martyrio das nações !» accrescentou o mesmo convencional, e esta phrase nunca se applicou melhor que a Portugal, que tem na historia dos seus reis a historia das suas vergonhas. Como homens, como portugueses, nós appelamos para o paiz para que faça a Republica ! Mais do que nunca ella urge – e estão invingados ainda os heroes de 31 de Janeiro !

Queremos ser livres, queremos ser felizes e basta para que o sejamos -eliminar a monarchia e fazer a Republica!


COIMBRA, 4 de dezembro de 1906


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